Artigo de Ney Lopes publicado no DIÁRIO DO PODER, editado em Brasília, DF.
A proposta de reforma da previdência social está sendo transformada em verdadeiro “maniqueísmo”, a filosofia religiosa persa do século III, que dividiu o mundo entre Deus e o Diabo, o bem e o mal (apoiadores e discordantes).
Não se nega que ela é absolutamente necessária. A grande questão será como executá-la. Há vários caminhos a serem trilhados, todos levando a resultados positivos no futuro, desde que se opte por medidas gradativas e temporárias (leis, por exemplo).
As posições inflexíveis, “donas da verdade”, radicais, maniqueístas, conduzirão o país a uma preocupante intranquilidade social, ninguém duvide.
Sabe-se que o objetivo da reforma é obter caixa para garantir o pagamento dos benefícios. Para isso torna-se necessário combater privilégios, contribuir mais e buscar recursos. Nada a opor.
Cabem observações, acerca da identificação de “novas fontes de recursos”, além das sugeridas na proposta inicial, para evitar que a classe média e baixa renda paguem sozinhas o déficit da Previdência.
A propósito, um fato chamou a atenção nos últimos dias.
O presidente Bolsonaro em café com jornalistas admitiu mudanças na proposta, resultantes do debate congressual, que se inicia.
O fato – absolutamente normal, como observou o vice Mourão- propagou-se como uma “catástrofe” pré-anunciada, no sentido de que o mercado desaprovara, condenara e “não aceitaria” mudanças no texto.
Percebe-se claramente “dirigismo”, na propagação dessas informações.
O debate nem se inicia no Congresso e já se colocam “ameaças”, “pressões”, como se apenas um caminho levasse a Roma.
Nunca é demais repetir que o básico da reforma previdenciária será eliminar e/ou reduzir o déficit atual.
Tudo bem.
Conclui-se que é necessário aumentar receitas, que não seja pela via da “mão única” de transferir ônus para assalariados, trabalhadores rurais e urbanos, servidores públicos, como está proposto na mensagem oficial ao Congresso.
A receita que falta poderá vir, também, da tributação de lucros e dividendos (o mundo todo tributa), com redução do IR sobre consumo e recriação da CPMF para grandes transações, na forma de imposto temporário (aí surge a experiência de adoção de leis temporárias).
Não se excluem do grande “sacrifício” às classes sociais citadas, com a eliminação, por exemplo, de abusos atuais e privilégios no serviço público. Todavia, não poderá ser regra genérica, Diz o ditado popular que o hospital infectado, não justifica a demolição.
A taxação de lucros e dividendos é adotada pelos países desenvolvidos e adeptos do livre mercado, filiados à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sendo exceções apenas Brasil e Estônia.
Estudos demonstram uma estimativa de receita extra, em torno de 30 bilhões, no primeiro ano,
Cerca de 5,4% do PIB foram subsídios, incentivos, diferimentos, juros subsidiados, isenções, dados pela União, dos quais 44% não sofrem nenhum tipo de fiscalização.
Neste item estão às renúncias permanentes de receita. Não se defende o corte radical, mas um “pente fino”, por tratar-se de moeda pública, igual àquela desviada na “lava jato”.
Dezenas de bilhões de reais (pagos por empregados e empresas) são retirados dos cofres da previdência, por meio da DRU (Desvinculação das Receitas da União)?
A DRU (R$ 92 bilhões, em 2016) permite que o governo federal use 30% da verba destinada à Previdência, para pagar juros da dívida pública.
Como se explica, a previdência ser deficitária e perder recursos legais, que lhes são destinados constitucionalmente?
Mesmo reconhecendo a inestimável contribuição do agronegócio à economia nacional (cerca de 20% da atividade econômica do Brasil), o setor poderia contribuir um pouco mais, quando atualmente arrecada apenas cerca de R$ 7 bilhões e a previdência arca com R$ 90 bilhões em aposentadorias e pensões?
Apesar de estar previsto na Constituição de 1988, o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) jamais foi regulamentado no Brasil e teria a previsão de arrecadação inicial de mais de R$ 30 bi. O mundo desenvolvido adota esse tributo.
É possível analisar um sistema previdenciário misto, na forma chamada de “multipilar”, incluindo até a capitalização, desde que o Estado seja corresponsável, em casos de insolvência de fundos de pensões, privados ou públicos.
Nessa ótica, as contas da Previdência seriam separadas de toda a parte assistencial (“benefícios sociais”), a ser financiada diretamente com recursos do Tesouro Nacional.
Outra fonte de receita seria um programa sério e racional de privatizações, envolvendo as 144 estatais, com exclusão daquelas consideradas estratégicas, como a Petrobras, Banco do Brasil, Eletrobrás.
No café recente com os jornalistas, o Presidente Bolsonaro, em atitude democrática, previu que o Congresso soberanamente poderia “ajustar” a proposta enviada, de acordo com o interesse nacional.
Por que o “mercado”, que prega tanto a liberdade ampla, total e irrestrita, insinua não conformar-se com um princípio democrático inalienável, que é a autonomia do Congresso Nacional?
Propaga-se, certamente, por “prepostos”, que o mercado não aceita.
Afinal, está provado que o século XVIII não tinha razão, quando Adam Smith no livro “Riqueza das Nações (1776)”, defendeu a ideia da mão invisível do mercado, que controlaria a economia, balanceando oferta e demanda, sem a presença do controle estatal.
A evolução histórica demonstrou que o mercado sem “regulações” pode levar a sociedade ao caos econômico e situações de crise.
A regulação protege o próprio empreendedor, por exemplo, da concorrência predatória.
Esses mecanismos não estatizam a economia, nem tão pouco intervêm na liberdade econômica. São normais nas maiores economias de mercado do mundo.
Recentemente, os Estados Unidos pararam “economicamente” por mais de um mês com o “shut down”, resultado de polêmica entre republicanos e democratas, na construção de um muro na fronteira com o México.
Nem por isso, as empresas fecharam, saíram da América e se instalaram em outros países, renunciando participar desse grande mercado.
Essas ameaças cheiram a chantagem!
A reforma previdenciária brasileira terá que ser feita, disso ninguém tem dúvida.
A influência do mercado existirá, sem, entretanto, ser decisiva e prioritária.
Aprovada a reforma, não haverá dúvidas de que o mercado se adaptará e trabalhará de acordo com as novas regras.
Assim acontece no mundo todo.
Não se justifica, portanto, a difusão dessa exagerada importância dada ao “mercado”, chegando a amedrontar a sociedade ao colocá-lo como agente supremo e definitivo para ditar no nascedouro as regras das mudanças.
A conclusão final é que, diante da crise econômica do país a reforma terá que ser implantada. Porém, pela via de redução da despesa e criação de receita, com a “divisão justa de sacrifícios”, mantido o princípio de trabalhar e contribuir mais, em favor da eliminação do déficit.
A proposta em debate, infelizmente, elege “bois de piranhas” e protege o “andar de cima”.
Por isso, ela terá que ser melhorada, já que o princípio do combate ao déficit previdenciário deve ser a bussola que guiará o país para o futuro.
Ney Lopes – advogado, ex-deputado federal, procurador federal, ex-Presidente do Parlamento Latino-Americano e da Comissão de Justiça da Câmara Federal –www.blogdoneylopes.com.br – nl@neylopes.com.br